Não é o Elvis Presley nem o Tommy Steel, já teve um cão que voava
por impulso mictório, e agora dá guarida a Sócrates, um papagaio filósofo
carregado de dúvidas metódicas e muito mais sabedoria do que a generalidade dos
cronistas políticos e sociais. Chama-se Fausto Bordalo Dias e é um nome de
referência (hoje diz-se incontornável, mas eu sou de outra escola) da música
popular portuguesa.
Depois vieram outros. À evocação do
passado – primeiro passo de uma trilogia continuada, doze anos depois, com
Crónicas da Terra Ardente, e que há-de ter o seu epílogo daqui por uns tempos
em mais um disco que não é difícil imaginar tão magistral como os anteriores –
seguiu-se a reflexão sobre o presente em O Despertar dos Alquimistas, o
reencontro com a matriz europeia em Para Além das Cordilheiras, a memória da
infância africana em A Preto e Branco.
No percurso de Fausto houve ainda
tempo para revisitar velhas canções em Atrás dos Tempos Vêm Tempos e para
registar momentos únicos ao vivo em Grande, Grande é a Viagem. E, mais
recentemente, voltou a surpreender tudo e todos com A Ópera Mágica do Cantor
Maldito, um poema sinfónico a várias vozes por onde passam histórias recentes,
realidades incómodas, afectos e desafectos. É este disco que serve de base ao
concerto que poderemos ver este fim-de-semana no Centro Cultural de Belém, e
oito dias depois no Coliseu do Porto.
Será, decerto, um momento único
para rever a arte superior deste compositor e intérprete a quem muitos não
perdoam o talento, a honestidade intelectual e humana, a frontalidade. É sempre
assim nos tempos e nos lugares em que a mediocridade e a pequenez dos espíritos
ditam as regras. Mas não é disso que quero falar aqui e agora.
O Fausto, o meu amigo Fausto, é
desde há mais de três décadas não apenas o homem íntegro e o artista exemplar
que todos conhecem, mas também um cidadão particularmente atento às coisas
simples da vida e às realidades que nem sempre se percebem imediatamente. No
desconchavo do mundo actual, ele é uma voz crítica e particularmente lúcida – e
por isso sobremaneira incómoda para os poderes de ocasião e os lacaios de
serviço.
Lembro-me das conversas que tivemos
quando Gorbatchov fazia de aprendiz de feiticeiro, e das opiniões que trocámos
quando os antigos libertadores africanos se transformaram nos cleptocratas mais
hediondos do tempo actual. Fausto nunca partilhou do autismo de muito boa gente
da sua geração, para quem ser de esquerda implicava silenciar os dislates e os
crimes cometidos em nome de um futuro melhor. E, também isto, há quem não lhe
perdoe. Mas é precisamente por isto que conquistou o respeito e a admiração dos
homens e mulheres que prezam a verdade e a justiça.
Por ser assim é que a nossa amizade
se mantém e aprofunda a cada dia que passa. Para desespero dos que nos impedem
a caminhada – como diz Ovídio Martins, um dos seus poetas da juventude –
teimosamente continuamos de pé. Porque ainda há coisas que valem a pena, porque
há quem não se venda nem se renda, por muito sedutor que seja o brilho das
glórias efémeras. O Fausto, o meu amigo Fausto, é um desses.
A Capital | 27.Mai.2005
Fonte – Viriato Teles
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